A NATUREZA DA MORDIDA – CARLA MADEIRA

domingo, dezembro 29, 2024

 


 

“A vida, essa senhora banguela, não teme a feiúra e faz coisas medonhas com sua boca murcha que não lhe inibe as gargalhadas. Ao contrário, gosta de nos exibir a extensão da mordida que nos dará com deboches e ironias ao invés de dentes, para nos fazer pagar a língua enquanto giramos estonteados, pra lá e pra cá, entre suas gengivas.”

 

“O que você não tem mais que te entristece tanto?”, assim tem início a primeira de muitas conversas que Biá terá com Olívia. Psicanalista aposentada e apaixonada por literatura, Biá tem uma mesa cativa em um sebo improvisado na banca de revistas de Rodolfo, que ficava na esquina de uma movimentada avenida de Belo Horizonte, e que aos domingos tinha uma das pistas impedida para os carros e liberada para os pedestres. Aquele lugar era de Biá, exceto quando Rodolfo se distraía e outra pessoa pegava a mesa de todo domingo.

 

Ao encontrar a jornalista Olívia sentada em seu lugar, sozinha, escrevendo, enxugando com os punhos as lágrimas transparentes que escorriam, Biá se recusou a ignorar o que via e lançou a pergunta um pouco intrusa de uma completa desconhecida a outra, mas que fez Olívia contar pela primeira vez sua história, fazendo as duas protagonistas se unirem genuinamente em meio a um imenso sofrimento.

 

Biá enfrenta uma gradual perda de memória. Durante a juventude teve uma vida boa com seu marido e sua filha e com a sua carreira. Sempre foi uma mulher apaixonada pelos livros, amava seu trabalho e se envolvia neles profundamente, deixando tudo e todos para depois. Apesar disso, seu marido e sua filha entendiam suas paixões e aguardavam ansiosamente pelos raros e inesquecíveis momentos que eles tinham juntos.

 

Quando criança, Olívia perdeu o pai em um trágico acidente e precisou, junto da mãe, reconstruir sua vida muito cedo. Entre as dificuldades do luto, tiveram que enfrentar interferências de homens que se sentiam autorizados a se aproximar de uma mulher viúva. Até que Rita aparece, uma vizinha nova com a amizade que Olívia tanto precisava, dando início a um período de cumplicidade, admiração e amor que foram se fortalecendo em anos de convivência e confidências.

 

Quando Biá chega até Olívia sentada em sua mesa na banca de Rodolfo, elas vivem a fase mais difícil de suas vidas e através da dor de cada uma nasce uma linda amizade. Entre as conversas vamos conhecendo outras mulheres que fazem parte das suas vidas, em especial Laura, a mãe de Olívia, e Teresa, a filha de Biá, e o que aconteceu com elas para chegarem até ali tão machucadas.

 

Narrado em capítulos intercalados pelas duas protagonistas, entre as anotações de Biá e os relatos dos encontros contados por Olívia, enquanto elas compartilham suas memórias uma com a outra, confessando um desejo profundo de voltar no tempo que teimosamente não para de andar para frente, nós avançamos a leitura procurando por esclarecimentos.

 

O ponto chave do livro é sobre as respostas que não temos e o quanto aguentamos não saber.  No caso de Biá, por que um pai e marido amoroso e responsável abandona sua família, sem dizer uma palavra? Já Olívia se questiona por que uma amizade verdadeira, de uma vida inteira, é rompida subitamente, sem razão aparente? Laços profundos são cortados repentinamente, sem explicações ou despedidas, deixando um vácuo e uma interrogação que se estende por quase toda a vida.

 

Não saber dói, machuca, revolta, dá raiva, dá medo. A vida se torna uma grande angústia e a busca por respostas vira uma obsessão. Claro que elas estão no passado, nas escolhas que fazemos, e tudo é uma consequência, nada é por acaso. Às vezes, a decisão de evitar o desastre que se aproxima traz consequências. Quando o amor é tão grande a ponto de fazer um movimento consciente de proteção e colocar a razão acima da emoção, esse pode se tornar um gesto nobre ou uma maldição.

 

Afinal de contas, será que conseguimos viver sem compreender tudo que nos afeta? Por experiência própria acredito que com o tempo as dúvidas vão amenizando a ponto de não nos martirizar tanto, não deixam e nunca vão deixar de existir e vira e mexe nos pegamos pensando sobre determinadas situações. Apesar disso, também temos a consciência de que não podemos controlar e saber tudo. Mas tem situações que nos sentimos no direito de saber, colocando o outro no dever de dizer. E uma das coisas que machucam, pelo menos para mim, é que falar é também um direito que o outro pode escolher não exercer.

 

“A natureza da mordida” é uma reflexão profunda sobre o peso do tempo sobre as decisões tomadas, envoltas em uma agonia causada pela falta de respostas que por vezes não conseguimos obter.

 

E você, já conhecia essa história?

Comenta aqui em baixo!

A gente se encontra no próximo post!

 

A NATUREZA DA MORDIDA

PÁGINAS: 240

AUTOR: CARLA MADEIRA

EDITORA: RECORD

 

You Might Also Like

0 comentários