Há muito tempo “Torto
arado” aparecia para mim como opção de leitura, seja vendo algum conhecido
lendo e indicando, seja pela própria internet. Como boa curiosa, resolvi
antecipá-lo na minha lista para descobrir o que me esperava em suas páginas, e
olha, que história!
A narrativa gira em
torno da família de Zeca Chapéu Grande e Salustiana, e suas filhas Bibiana e
Belonísia, descendentes de escravizados. Ambientado na fictícia Fazenda de Água
Negra, povoado do interior da Bahia, a trama tem início com o acidente que
marcará a vida das duas irmãs. Após darem voz à curiosidade de criança, as
meninas tentam descobrir o segredo guardado pela avó Donana em uma mala.
Enrolada em um pano está uma faca reluzente, com um imponente cabo de marfim, e
graças ao brilho do seu metal causa grande fascínio nas irmãs, fazendo-as ter o
desejo de provar o seu gosto. Após serem surpreendidas pela avó, o susto
causado por ela e a falta de cuidado com o manejo da faca, acabam decepando a
língua de Belonísia, impondo à menina uma vida inteira de silêncio.
Narrado em primeira
pessoa pelas duas irmãs e, ao final, por uma entidade do jarê, ritual de dança
do candomblé caboclo praticado pelos moradores de Água Negra, nos é apresentado
de uma maneira envolvente, um Brasil profundo e diferente do que estamos
acostumados a ver, dando voz à exploração, à fome, à seca, às relações de
poder, às ameaças e à violência.
Sob a voz de Bibiana
descobrimos as restrições impostas aos que vivem sem escola, sem perspectivas e
sem qualquer tipo de assistência, impossibilitando tantas crianças a
ultrapassarem da primeira infância. Como dito por ela em um trecho da
narrativa: "As crianças eram as que mais padeciam: paravam de crescer,
ficavam frágeis e por qualquer coisa caíam doentes. Perdi as contas de quantas
não resistiram à má alimentação e seguiram sem vida, em cortejo, para o
cemitério da Viração. As velas que meu pai acendia para cada criança pareciam
não querer permanecer acesas: mesmo sem ventos ou golpes de ar, se
apagavam."
Apesar de suas
condições físicas, Belonísia também “dá voz” a essa história, mostrando tantos
outros que, assim como ela, vivem uma vida marcada pelas limitações. Com ela
“ouvimos” que as casas onde moravam na fazenda deveriam ser de barro e sem o
“tal banheiro”, condição imposta pelos donos da fazenda que não suportavam a
ideia de que os trabalhadores tivessem boas moradias que se parecessem com as
casas-grandes. Belonísia nos fala sobre a dureza da seca que rareava os
alimentos e os peixes dos rios, além da abundância das chuvas que por vezes
destruíam as plantações.
Belonísia dá voz
ainda às mulheres e a violência de gênero sofrida pelas mulheres do campo,
maltratadas pelo sol e pela seca. Dentro de casa com seu marido Tobias, Belonísia
sofre abusos psicológicos e se revolta quando a ameaça de agressões físicas se
faz presente. Após ficar viúva, o sentimento que toma conta do seu corpo é como
a chuva que chega após um longo período de seca: uma verdadeira bênção. Sozinha
e se mantendo por conta própria, Belonísia toma as rédeas da própria vida e
acaba se tornando protetora de Maria Cabocla e seus filhos, a mulher a quem
amou em silêncio.
Em sua última parte,
quem dá voz à narrativa é uma entidade do jarê. É ela que nos conta os segredos
ainda não revelados, os detalhes que não vimos através dos olhos das duas irmãs.
Ela traz à tona os conflitos de terra que causam medo e morte, são dela que
surgem passagens de resistência e luta do povo: “Queriam ter casas de
alvenaria. Queriam moradas que não se desfizessem com o tempo e que demarcassem
de forma duradoura a relação deles com Água Negra”.
Itamar Vieira Junior nos leva a um mergulho no Brasil um
tanto quanto desconhecido, principalmente por quem vive nas grandes cidades. Um
Brasil que, após mais de 130 anos da assinatura da Lei Áurea, insiste em não
acertar as contas com o passado escravocrata. “Torto arado” é um
clássico instigante e arrebatador com mais de 100 mil exemplares vendidos,
sucesso de público e crítica, recebeu os prêmios Leya, Jabuti e Oceanos.
Resumidamente uma leitura necessária para aprendermos mais sobre a nossa
própria história.
TORTO ARADO
PÁGINAS: 264
AUTOR: ITAMAR VIEIRA
JUNIOR
EDITORA: TODAVIA